Se há uma coisa que revolta o artista, talvez até mais do que a indiferença por parte da platéia, é o rigor do poder público diante da arte exposta na rua.
Muitos deles são confundidos com camelôs e têm até o material de trabalho apreendido por policiais, guardas municipais ou fiscais da secretaria de fazenda.
Quanto ao rigor da fiscalização e da ação policial, os artistas que se exibem nas ruas são unânimes na reclamação. Ouça o "muro de lamentações". A começar pela indiazinha equatoriana Chiza Marisela, do grupo folclórico Chaskys, lamentando a ação de policiais de Porto Alegre.
"Hay problemas cuando dicen que tenemos que ‘ficar' acá en el centro. No hacemos caso porque no estamos en nuestro país, sino que estamos en otro país". Nem pense que se trata de perseguição a "nuestros hermanos". A reclamação também é feita em português alto e claro, como o de Indiara Caiapó, uma índia paraense que produz artesanato de qualidade e o vende nos centros urbanos do país.
Dessa vez, a bronca de Indiara é com a Guarda Municipal do Rio de janeiro.
"A gente não tem proteção. Se, por acaso, a gente sair para vender na rua, sempre aparece a fiscalização para querer, como se diz, embaraçar. Aqui na Cinelândia, nós começamos a trabalhar e eles queriam tomar a nossa mercadoria. A gente não tem garantia de nada. A gente não tem proteção de nada". Também revoltado, o diretor do grupo de teatro Tá na Rua, Amir Haddad, até se arrisca a fazer um histórico do processo de fiscalização da atividade artística na rua desde os tempos da ditadura até hoje.
"Quando a gente começou a trabalhar nas ruas, a gente estava fugindo da regulagem. O Estado é muito coercitivo: imediatamente vem e regula a atividade. Então, eu vi como o teatro era frágil sendo feito naquele lugar onde todo mundo sabia onde estava: iam lá o fiscal, o censor, a polícia, o credor e todos os meios de regulagem que a sociedade tem. Então, a gente foi (para a rua) para trabalhar com liberdade: a gente ia, fazia o espetáculo e desaparecia. Com o crescimento da atividade de rua, as autoridades começaram a regular essa atividade. E, às vezes, é regulada de uma forma insuportável, cobrando dinheiro dos artistas de rua para fazer espetáculo na rua. Quase todas as prefeituras fazem isso. E isso é muito chato". Quando a brasiliense Mayra Oliveira foi dirigir um grupo de teatro de rua em São Paulo, também enfrentou dissabores.
"Em alguns lugares, no interior de São Paulo, a gente teve que pedir alvará para poder estar numa praça determinada. Para eles irem para a rua, para qualquer praça, para a Praça da Sé, para o centro de São Paulo, eles só podiam se apresentar com o alvará da prefeitura. E esse alvará realmente era cobrado. Havia policiais lá que cobravam, o que é meio estranho porque é (um espaço) público e acho que todo mundo tem direito". Como disse Mayra Oliveira, o que muitos artistas não conseguem entender é como, em um lugar público e democrático como a rua, pode-se impor tanta restrição à atividade artística.
Mas não é que as autoridades têm a resposta na ponta da língua? O chefe da comunicação social da Polícia Militar do Distrito Federal, coronel Sivaldo Florêncio, usa os mesmos argumentos constitucionais de espaço público e democrático para defender a ação de policiais e fiscais.
"O artigo quinto (da Constituição Federal) permite a todo cidadão brasileiro o direito de ir e vir e, em algumas oportunidades, de até ficar em determinados locais. Ocorre que temos tido, aqui em Brasília, uma série de reclamações, não só por parte das autoridades de trânsito, mas, principalmente, por parte da comunidade em geral de alguns artistas que se apresentam no meio dos carros, muitas vezes até prejudicando o trânsito e colocando em risco a sua integridade física e a integridade física dos transeuntes e dos condutores de veículos". O coronel Florêncio ressalta que Brasília é uma metrópole com mais de um milhão de veículos em circulação e que cabe às autoridades garantir a fluidez do trânsito.
Acrescentou, ainda, que a PM recebe denúncias diárias sobre pessoas que, fazendo-se passar por artistas, assaltam motoristas e pedestres pelas ruas e calçadas da capital federal.
"Nós tivemos, por exemplo, ali perto da rua das farmácias e restaurantes, a reclamação de dois moradores dali de que essas pessoas, após os malabares que faziam, iam para atrás do banco que ali existe e faziam, além do consumo de drogas, até atos obscenos. Fizemos ali um trabalho com o serviço de inteligência e constatamos que um desses malabares era um foragido da justiça de São Paulo por ter cometido dois homicídios lá". Para evitar a confusão entre bandidos e homens e mulheres de bem que usam as ruas para expressar sua arte, a PM de Brasília pretende aperfeiçoar a fiscalização em um trabalho conjunto com a Secretaria de Cultura.
O problema é semelhante em todos os grandes centros urbanos. No Rio de Janeiro, por exemplo, a inspetora da Guarda Municipal, Tatiana Mendes, informa que os guardas são orientados a agir com o bom senso nas abordagens com artistas de rua.
Porém, reconhece que muita gente tenta se passar por artista para driblar a fiscalização.
"Não podemos confundir ambulantes com artista plástico. O pintor pinta lá e expõe. Alguns fazem caricatura na hora. Isso é uma coisa: ele fez na hora, expôs e, naturalmente, estará vendendo. Agora, vamos pegar um outro caso: um índio que tem autorização da Funai para expor a sua arte. Aí, a gente vê o índio - por exemplo, na avenida Atlântica - vendendo CD. Ou seja, ele confundiu as coisas: quando ele está vendendo CD, ele está simplesmente trabalhando como se fosse um ambulante. É lógico que, se a pessoa insistir, naturalmente, vai ser levada a se retirar do local e, se até houver alguma coisa mais, naturalmente será apreendida a mercadoria. Mas isso, só em última instância". Para conciliar os interesses do poder público e do artista que deseja se apresentar livremente nas ruas, o jeito é seguir o que mandam as leis municipais sobre o uso de espaço público.
São Paulo, por exemplo, exige um alvará de autorização. No Rio, a inspetora Tatiana Mendes explica que as exigências são semelhantes.
"O que a gente tem de ter bem claro é que ele tem de procurar fazer isso de maneira ordeira, respeitando o ir e vir das pessoas; mantendo o local limpo, porque muitas vezes ele faz ali a apresentação dele e deixa o local sujo. E ter essa liberação do documento escrito ´Nada a opor´, que é dado pela Região Administrativa mais próxima. Então, ele tem que saber a praça, o logradouro, ou seja, o local em que ele pode expor a arte dele". Em Salvador, a organizadora do Festival Internacional dos Artistas de Rua da Bahia, Selma Santos, garante que essa conciliação de interesses é realmente o melhor caminho para a exibição da arte na rua sem transtornos.
"Aqui, a gente se cerca com o apoio da polícia, da Sesp. As pessoas têm um carinho muito grande pelo festival e nunca aconteceu de ninguém chegar, raspar e levar nada, não. A gente já comunica com antecedência a todos os órgãos envolvidos e interessados para que aconteça bem". Além de livrar-se dos "rapas", os artistas de rua também reivindicam respeito, reconhecimento e melhores condições para levar uma vida digna. De Brasília, José Carlos Olveira