"Parece que ciganos e ciganas somente nasceram no mundo para ser ladrões. Nascem de pais ladrões, criam-se com ladrões, estudam para ladrões e finalmente saem para ser ladrões comuns. A vontade de roubar e o roubar aparecem neles como acidentes inseparáveis que não se acabam até o momento da morte". Essas linhas abrem o romance A Ciganinha, de Miguel de Cervantes. Publicado em 1613, em grande parte esse imaginário se perpetua até hoje. Paula Soria é uma cigana sinti que defendeu uma tese de mestrado na Universidade de Brasília sobre os estereótipos do povo cigano na literatura dos não ciganos. Ela aponta que o roubo e o sobrenatural são os estigmas recorrentes quando se pensa nos ciganos.
"Antes seria cigano ladrão, ladrão de criança, principalmente. Hoje em dia também existe esse preconceito, mas o mais forte agora, até porque estamos em tempos politicamente corretos, é estereótipo do cigano sobrenatural, místico, com poderes paranormais. Isso não é interessante. Pode existir, porque existe toda uma tradição de pôr as cartas, ler as mãos, então podem existir ciganos com algum poder, mas isso não pode ser uma generalização. Ou seja, de qualquer forma continua sendo um ser anormal, diferente. Pela dúvida nos afastemos deles porque são estranhos" Paula Soria conta que uma das explicações possíveis para o mito de que cigano rouba criança seria o fato de que antigamente, os grupos acolhiam crianças de mulheres não ciganas, quando os bebês eram gerados fora do casamento. As mães davam os filhos e depois se arrependiam, dizendo então que as crianças tinham sido roubadas. Paula Soria nasceu em algum lugar entre a Bolívia e a Argentina, mas foi registrada no Brasil. Foi cigana nômade que atravessou diversos países da América do Sul, e foi à escola pela primeira vez aos dez anos de idade. Para continuar os estudos ela teve que romper com sua família, com quem hoje mantém contatos muito espaçados. Hoje ela se considera como alguém entre culturas, se orgulha de suas raízes ciganas e segue trabalhando para dissolver os estigmas. Mas para seguir estudando, teve de bancar um sério conflito com a família. Ela aponta que o costume cigano de não enviar os filhos à escola é algo que pede diferentes análises. Além do receio dos pais de que os filhos percam os referenciais ciganos, as famílias também temem o preconceito.
"Professores não estavam preparados, havia muito preconceito, os alunos também, principalmente na minha época. Agora ainda é assim, imagina há um tempo atrás. a idéia do cigano ladrão, cigano rouba criança. Eu, por exemplo, às vezes não falava bem e falavam: tá jogando praga, os professores tinham medo. É difícil porque os pais sabem também, apesar do temor de mandar os filhos e se aculturarem, deixar de ser ciganos, eles sabem que essa criança vai ser mal recebida, vai ser maltratada" Paula acredita que é possível estudar e continuar sendo cigana, mesmo que as famílias mais tradicionais ainda não aceitem isso. O número de ciganos analfabetos ainda é muito grande, sendo que o costume de não ir à escola ou estudar durante poucos anos ainda se mantém na maioria das comunidades. Farde Sthepanovichil é presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana de São Paulo, e explica que como os ciganos trabalham em sua maioria com comércio, a educação formal nem sempre é valorizada pois não é necessária para os negócios. Mas ele reconhece que quando o assunto é educação, também há um grande receio de que os jovens queiram se relacionar com os não ciganos "Aí você vai dar abertura, oportunidade para ela se relacionar com uma pessoa que não seja cigana, e isso nós não queremos. Então por isso que uma boa parte da comunidade cigana até a sétima, oitava série estudam, aí depois é o momento de pedir: filho, por favor, vamos recuar agora, vamos continuar a nossa vida". A família é a base de todo grupo cigano. Ouvindo pessoas de diferentes clãs, os valores que aparecem são os mesmos e se baseiam no respeito aos mais velhos e na união familiar. Os ciganos seguem mantendo o costume de se casar muito cedo, a partir dos 15 anos. O namoro é proibido e o casamento precisa ser acertado entre as famílias. Farde Sthepanovichil explica que esse costume desperta o espanto dos gajés, os não ciganos, mas que o número de uniões felizes entre os ciganos fala por si.
"As pessoas quando escutam falam, poxa, mas com 16, 17 anos se casam, será que esse casamento dá certo, será que dura, são meninos ainda, não conhecem muito bem a vida. Só que 80, 90% dos casamentos ciganos dão certo. Então se mais que a maioria dá certo, é sinal que alguma coisa correta está acontecendo". O casamento fora do clã cigano segue sendo um tabu. Jucelho Dantas é cigano kalon e vive na Bahia. Ele se casou com uma não cigana, com quem tem dois filhos. Jucelho aponta que sua família aceitou a união, mas que há resistências.
"Ciganos de modo geral são muito machistas, a sociedade é muito patriarcal. O homem pode tudo, a mulher realmente tem que ralar muito para conseguir. Mesmo o homem casando com outra etnia, é complicado porque não há uma aceitação 100%. No caso de minha família, aceitou, eu e outro irmão somos casados com pessoas que não são ciganas, mas há uma certa resistência. No caso das ciganas é muito mais difícil". Jucelho conta que sua esposa e filhos estranham alguns costumes que são comuns entre os ciganos, como as roupas e as festas animadas, por exemplo. Ele também menciona que a família é tudo dentro do clã cigano, que em geral é muito unido, mas menciona também que ciganos costumam ser muito viscerais - se amam, amam com intensidade, e se odeiam, também odeiam com intensidade. Jucelho é professor da Universidade Federal de Feira de Santana, e conta que dentro do seu ambiente de trabalho procura divulgar a cultura cigana e desmistificar os estereótipos.
"Quando eu entro em uma turma nova pra dar aula, eu sempre me identifico como cigano, para mostrar para eles que os ciganos não são aquilo somente que eles dizem, são outras coisas também, são muito mais e podem estar ali junto com eles, lado a lado, sem problemas. Então me identifico sempre e sempre causo aquele burburinho na sala,oh cigano... eu sinto que eles ficam assim meio espantados de ver um cigano dando aula para eles. Mas é isso, essa coisa está muito no início e a tendência normal é que as coisas melhorem, eu espero". São inúmeros os aspectos da cultura cigana que merecem destaque. A união familiar, o hábito da mulher cigana de ter as panelas brilhando, o gosto pela abundância e alegria nas reuniões são apenas alguns deles. È um povo com costumes diferentes, mas que nesse momento quer ser visto apenas com respeito.
De Brasília, Daniele Lessa