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Artista de Rua, A rua como espaço democrático

Se "todo artista tem de ir aonde o povo está", como diz Milton Nascimento, é natural que a rua seja o principal destino de performáticos da arte. Afinal de contas, a rua é o espaço público mais democrático que se pode ter, pois serve de palco para o exercício do direito universal de ir e vir, cada um no seu ritmo.

Uns andam apressados, sem tempo para nada; outros seguem lentamente; alguns vão alheios a tudo; outros se mantêm atentos a todos.

É no meio dessas idas e vindas em ritmos variados que surgem os artistas de rua para divertir quem passa por ali.

Para atrair a atenção do público, é preciso algo mais do que o simples talento artístico, como conta Mayra Oliveira, atriz e diretora do grupo de teatro Esquadrão da Vida Ary Para-raios, de Brasília.

"A gente pôde perceber e desenvolver uma linguagem que fosse apropriada para a rua, em que as pessoas pudessem parar, não ficassem com o sol na cara, porque isso dispersa muito o público. A gente aprendeu a fazer um cenário em que o som ficasse um pouco mais para dentro e as pessoas pudessem ouvir. São muitas peculiaridades. É muita coisa acontecendo: é ônibus passando, é carro buzinando, é vendedor gritando na rua. Então, são muitas coisas que você tem que driblar. Isso exige uma disciplina muito grande. A técnica vocal que a gente precisa é outra. No caso do esquadrão, ainda tem uma especificidade que é a acrobacia. Então, a gente tem que desenvolver a nossa linguagem corporal, vocal, dramática e dramatúrgica em função do que acontece na rua". Nas oficinas de atores do Esquadrão da Vida, também são treinados elementos específicos para aumentar a concentração do artista diante de imprevistos.

Segundo Mayra Oliveira, a improvisação e a concentração são fatores fundamentais para quem exibe sua arte nas ruas.

"Nós, atores de rua, temos que estar preparados para o que der e vier. Já aconteceu de um bêbado, na rua, começar a reger o espetáculo. A gente estava aquecendo, se alongando, e aí o bêbado falava: ´isso, alonga mais para cá, vai para lá´. São coisas engraçadas, mas a gente tem que estar muito concentrado e desenvolver esse tipo de concentração nos nossos ensaios para que o espetáculo possa correr com segurança. Você tem que estar sensível a tudo que esteja acontecendo na rua". Bêbados que regem o espetáculo, palpiteiros que planejam um outro fim para a trama, uma criança que esgoela no colo da mãe, um religioso revoltado com uma cena ou um diálogo mais apimentado, um desafinado que canta mais alto do que todos, enfim, existem diversas possibilidades de o espetáculo na rua receber a interferência direta de um público bem heterogêneo.

Há mais de 30 anos à frente do grupo carioca de teatro Tá na Rua, o diretor Amir Haddad se diverte com essa interação.

Segundo Haddad, ela ajuda os próprios atores e artistas a criar uma linguagem própria para aprimorar a comunicação com o público.

"Quando você vai para a rua, começa a ver que as leis que regem essa dinâmica de interação entre ator, espectador e espetáculo são muito diferentes daquelas das salas fechadas. Existe outra organização do mundo fora das salas. Você trabalha com todas as manifestações da sociedade, de todos os segmentos. Acho que a coisa mais importante que a gente descobriu indo para a rua foi a possibilidade de trabalhar para uma platéia heterogênea e inventar uma linguagem que possa ser absorvida por todo e qualquer cidadão". Edmilson Santini, o cordelista pernambucano, é outro a valorizar a interação do artista de rua com o público.

No caso das expressões artísticas mais populares, como é o caso do cordel, Edmilson explica que esse processo é natural porque reflete os ideais democráticos de arte do povo, feita pelo povo para o povo.

"Ontem, passou um amigo meu, me viu aqui e falou: ´não adianta, você já está integrado à rua´. Quando eu comecei a fazer esse trabalho, pensei numa frase assim: ´eu faço um teatro de precisão / vou onde preciso ir / portanto, preste atenção / que uma história vamos ouvir´. Aí, é a linguagem da literatura de cordel chegando onde a gente quer que chegue, verdadeiramente aonde o povo está. O povo pára e a gente conta essas histórias". E percebam o encantamento que um espetáculo, por mais simples que seja, pode provocar numa pessoa que caminha estressada pelo centro de uma grande cidade. O relato a seguir é do empresário carioca Kauê Lindem.

"Um dia, eu estava passando pela rua Uruguaiana, onde há vários artistas, e vi um cachorro, que, aparentemente, sabia ler. O dono, com a família inteira, uma criança e a esposa faziam uma roda e várias plaquinhas com as letrinhas, o alfabeto todo. As pessoas iam passando pelas ruas e eles perguntavam: ´qual o nome da senhora?´ ´Ah, Natália´. Aí, ele perguntava para o cachoro: ´qual a segunda letra do nome Natália?´ Aí, o cachorro dava a volta, pegava a letra A na boca e entregava para o dono. ´Isso, cachorro, muito bem feito´. Ele ia fazendo essa brincadeira e eu fiquei uns 20 minutos acompanhando o cachorro e fiquei muito impressionado com aquilo". O empresário ficou tão impressionado que, a partir desse dia, decidiu arregaçar as mangas e criar uma estrutura de divulgação para o trabalho desses artistas de rua.

Os detalhes desta iniciativa você vai conhecer melhor na última matéria desta série de reportagem.

De Brasília, José Carlos Oliveira

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Se "todo artista tem de ir aonde o povo está", como diz Milton Nascimento, é natural que a rua seja o principal destino de performáticos da arte.

Afinal de contas, a rua é o espaço público mais democrático que se pode ter, pois serve de palco para o exercício do direito universal de ir e vir, cada um no seu ritmo.

Uns andam apressados, sem tempo para nada; outros seguem lentamente; alguns vão alheios a tudo; outros se mantêm atentos a todos.

É no meio dessas idas e vindas em ritmos variados que surgem os artistas de rua para divertir quem passa por ali.

Para atrair a atenção do público, é preciso algo mais do que o simples talento artístico, como conta Mayra Oliveira, atriz e diretora do grupo de teatro Esquadrão da Vida Ary Para-raios, de Brasília.

"A gente pôde perceber e desenvolver uma linguagem que fosse apropriada para a rua, em que as pessoas pudessem parar, não ficassem com o sol na cara, porque isso dispersa muito o público. A gente aprendeu a fazer um cenário em que o som ficasse um pouco mais para dentro e as pessoas pudessem ouvir. São muitas peculiaridades. É muita coisa acontecendo: é ônibus passando, é carro buzinando, é vendedor gritando na rua. Então, são muitas coisas que você tem que driblar. Isso exige uma disciplina muito grande. A técnica vocal que a gente precisa é outra. No caso do esquadrão, ainda tem uma especificidade que é a acrobacia. Então, a gente tem que desenvolver a nossa linguagem corporal, vocal, dramática e dramatúrgica em função do que acontece na rua".

Nas oficinas de atores do Esquadrão da Vida, também são treinados elementos específicos para aumentar a concentração do artista diante de imprevistos.

Segundo Mayra Oliveira, a improvisação e a concentração são fatores fundamentais para quem exibe sua arte nas ruas.

"Nós, atores de rua, temos que estar preparados para o que der e vier. Já aconteceu de um bêbado, na rua, começar a reger o espetáculo. A gente estava aquecendo, se alongando, e aí o bêbado falava: ´isso, alonga mais para cá, vai para lá´. São coisas engraçadas, mas a gente tem que estar muito concentrado e desenvolver esse tipo de concentração nos nossos ensaios para que o espetáculo possa correr com segurança. Você tem que estar sensível a tudo que esteja acontecendo na rua".

Bêbados que regem o espetáculo, palpiteiros que planejam um outro fim para a trama, uma criança que esgoela no colo da mãe, um religioso revoltado com uma cena ou um diálogo mais apimentado, um desafinado que canta mais alto do que todos, enfim, existem diversas possibilidades de o espetáculo na rua receber a interferência direta de um público bem heterogêneo.

Há mais de 30 anos à frente do grupo carioca de teatro Tá na Rua, o diretor Amir Haddad se diverte com essa interação.

Segundo Haddad, ela ajuda os próprios atores e artistas a criar uma linguagem própria para aprimorar a comunicação com o público.

"Quando você vai para a rua, começa a ver que as leis que regem essa dinâmica de interação entre ator, espectador e espetáculo são muito diferentes daquelas das salas fechadas. Existe outra organização do mundo fora das salas. Você trabalha com todas as manifestações da sociedade, de todos os segmentos. Acho que a coisa mais importante que a gente descobriu indo para a rua foi a possibilidade de trabalhar para uma platéia heterogênea e inventar uma linguagem que possa ser absorvida por todo e qualquer cidadão".

Edmilson Santini, o cordelista pernambucano, é outro a valorizar a interação do artista de rua com o público.

No caso das expressões artísticas mais populares, como é o caso do cordel, Edmilson explica que esse processo é natural porque reflete os ideais democráticos de arte do povo, feita pelo povo para o povo.

"Ontem, passou um amigo meu, me viu aqui e falou: ´não adianta, você já está integrado à rua´. Quando eu comecei a fazer esse trabalho, pensei numa frase assim: ´eu faço um teatro de precisão / vou onde preciso ir / portanto, preste atenção / que uma história vamos ouvir´. Aí, é a linguagem da literatura de cordel chegando onde a gente quer que chegue, verdadeiramente aonde o povo está. O povo pára e a gente conta essas histórias".

E percebam o encantamento que um espetáculo, por mais simples que seja, pode provocar numa pessoa que caminha estressada pelo centro de uma grande cidade. O relato a seguir é do empresário carioca Kauê Lindem.

"Um dia, eu estava passando pela rua Uruguaiana, onde há vários artistas, e vi um cachorro, que, aparentemente, sabia ler. O dono, com a família inteira, uma criança e a esposa faziam uma roda e várias plaquinhas com as letrinhas, o alfabeto todo. As pessoas iam passando pelas ruas e eles perguntavam: ´qual o nome da senhora?´ ´Ah, Natália´. Aí, ele perguntava para o cachoro: ´qual a segunda letra do nome Natália?´ Aí, o cachorro dava a volta, pegava a letra A na boca e entregava para o dono. ´Isso, cachorro, muito bem feito´. Ele ia fazendo essa brincadeira e eu fiquei uns 20 minutos acompanhando o cachorro e fiquei muito impressionado com aquilo".

O empresário ficou tão impressionado que, a partir desse dia, decidiu arregaçar as mangas e criar uma estrutura de divulgação para o trabalho desses artistas de rua.

Os detalhes desta iniciativa você vai conhecer melhor na última matéria desta série de reportagem.

De Brasília, José Carlos Oliveira