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A Tragicomédia Acadêmica, Estilo Próprio

“Nossa! Eu a-do-rei seu trabalho”, disse o professor de Introdução à Pintura. “Ficou muito bem resolvido. Finalmente, hem?” “Minha tela é esta aqui, professor”, contestou o aluno. “Essa aí é minha paleta.” “Ah.” Já não sabia mais o que fazer. Tudo o que criava, quando premeditado, não era visto com bons olhos. “Isso aí, o Jasper Johns já fez há uns trinta anos atrás.” Queria contestar o maldito Sistema. Mas tudo o que fazia era, ainda que por acidente, mero plágio. Era o Sistema. “Você precisa desenvolver, realizar um trabalho próprio, sacô?” Não, não tinha sacado. Todos os artistas do seu meio, quando reverentemente aceitos, apresentavam obras que apenas eles próprios compreendiam. Talvez fosse isto o tal Trabalho Próprio. Portanto, resolveu soltar-se mais. De pura sacanagem, inscreveu-se em dois salões de arte: um no Rio, outro em Curitiba. Enviou seus trabalhos mais espontâneos. E ganhou, apesar da crítica não tão favorável, o primeiro prêmio em ambos. Ganhou, também, dois meses de depressão. Por fim, seus quadros, esculturas e instalações, mesmo os que o agradavam, já não significavam nada para ele. Não lhe transmitiam nenhuma sensação, nenhum sentimento, nenhuma mensagem. Até que se sentira bem após realizar cada um daqueles trabalhos. Mas ele não queria fazer terapia ocupacional, queria fazer Arte. Os críticos, quando do anúncio da premiação, afirmaram que ele tinha talento, mas que ainda não possuía uma linguagem própria. “Talvez seja esse o papel da arte, hoje”, pensou. “Mostrar o quanto nossa vida tornou-se vazia, insossa e apenas de cada um de nós próprios.” Então, mesmo sem abandonar o curso de Artes Plásticas na Universidade de Brasília, desistiu da Arte com “A” maiúsculo. Agora aderira ao sistema. Trabalhava numa agência de publicidade, no Plano Piloto. Estava bem melhor, finalmente ganhava algum dinheiro. Comprou um carro, aprendeu a usar o computador e vários softwares gráficos. Sua vida, porém, continuava vazia, insossa e apenas dele próprio. Pensou em matar-se em nome da Arte – ainda era um artista – mas isto também já haviam feito: Schwarzkogler, um austríaco, em 1969, o fizera propositadamente durante uma performance. Sem contar os inúmeros artistas mortos no embate cotidiano com as circunstâncias. Não havia saída. Nem mesmo num meio recente como o computador. “O jeito é ir levando”, disse um amigo. Foi o que fez. Continuou na agência, na faculdade e pintando um quadro ou outro em casa. Apenas para manter a prática. Com o tempo, essa atividade caseira tornou-se uma obsessão. Até que um dia, desmaiou de exaustão sobre uma de suas telas. Sua cara ficou estampada ali. “Fantástico!”, afirmaram os críticos. “Ele encontrou um estilo próprio. Sente-se sua marca, sua personalidade em cada uma de suas obras. Um gênio!” Aquilo o aborreceu. Quando caíra sobre a tela, borrara a idéia inicial. Mas vá lá, precisava de dinheiro. Pelo menos poderia largar o emprego. Assim, aos domingos, derretia-se de tédio na frente da TV. Deitado sobre uma tela lambrecada de tinta. “Fantástico!”, diziam os críticos. Ele faturava. Fazia esculturas com argila. Usava-as, quando ainda úmidas, como travesseiro. Sua casa tornara-se um processo de criação artística. Os críticos aplaudiam. O dinheiro e a fama entravam. Numa segunda-feira cinzenta, o reitor da UnB mandou chamá-lo. Encomendou uma estátua do piloto Ayrton Senna que seria colocada, no campus, entre as estátuas do John Lennon e do Mickey Mouse. O curador do Museu Guggenheim, de Nova York, estaria presente na inauguração. “Preciso de algumas semanas”, disse. “Três.” “Três? !” “É, três semanas.” “O.k. Três.” Ao fim de dezessete dias, ainda não havia começado. Seria sua grande oportunidade. Era preciso cumprir o trato. Precisava levar seu trabalho a sério. E em poucos dias, com certeza, estaria expondo em Nova York. Talvez fosse esse o caminho para a Arte: ser apreciado num museu da Grande Maçã. Comprou, pois, tintas, resinas, pigmentos vários, arames, solda, ligas de ferro doce, bacias, uma caixa d'água – onde prepararia a resina. Com arame, ferro doce e a solda montou um esqueleto. Só faltava cobrir com resina e depois pintar. Mas não conseguiu. Estava levando o trabalho a sério demais. Isto o travou. Exasperado, despejou os vidros de resina na caixa d'água, cuspiu lá dentro. “Bela merda! !”, berrou. E saiu batendo a porta. Quando voltou, às quatro da manhã, estava bêbado. Agora ele ia conseguir. Encheu as bacias com diferentes tintas. Levou o esqueleto de metal até a caixa d'água. Escorregou. Caiu dentro da caixa d'água. Levantou grogue, não entendia o que estava acontecendo. Coberto dos pés à cabeça com resina, tentava sair da caixa. Quando conseguiu, saiu tropeçando e caiu sobre as tintas. Engoliu mais de dois litros de cores variadas. A resina já estava quase seca. Teve tempo apenas de levantar-se e retirar uma bacia de tinta da cabeça. A resina endureceu. Dois dias depois, foi encontrado assim. Em pé, o braço estendido, com a bacia na mão. “Genial!”, disseram. “É o Ayrton sem tirar nem pôr.” “Sem tirar nem pôr o capacete”, acrescentou alguém. A estátua foi inaugurada com estardalhaço. O reitor estava orgulhoso do seu aluno-artista. Pena o rapaz não estar presente. O reitor discursava quando se ouviu um pum próximo à estátua. “Você escutou esse barulho?”, perguntou o curador do Guggenheim em inglês. “Eu não fui!” “Nem eu”, sussurrou o reitor. “Hmm... Que cheiro de tinta velha!” Um mês depois descobriram que aquele outro cheiro ruim – que já não era de tinta – não era caca de pomba. Era da estátua mesmo. “Que idéia fabulosa!”, disse o curador do Guggenheim pelo telefone. “Uma estátua que morre...” Foi sepultada, três dias depois, numa sala especial do Guggenheim Museum, em Nova York. Era apreciadíssima pelo público. Só não se entendia por que o genial escultor não fora receber os cem mil dólares que recebera pela obra.

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“Nossa! Eu a-do-rei seu trabalho”, disse o professor de Introdução à Pintura. “Ficou muito bem resolvido. Finalmente, hem?”
“Minha tela é esta aqui, professor”, contestou o aluno. “Essa aí é minha paleta.”
“Ah.”
Já não sabia mais o que fazer. Tudo o que criava, quando premeditado, não era visto com bons olhos.
“Isso aí, o Jasper Johns já fez há uns trinta anos atrás.”
Queria contestar o maldito Sistema. Mas tudo o que fazia era, ainda que por acidente, mero plágio. Era o Sistema.
“Você precisa desenvolver, realizar um trabalho próprio, sacô?”
Não, não tinha sacado. Todos os artistas do seu meio, quando reverentemente aceitos, apresentavam obras que apenas eles próprios compreendiam. Talvez fosse isto o tal Trabalho Próprio. Portanto, resolveu soltar-se mais. De pura sacanagem, inscreveu-se em dois salões de arte: um no Rio, outro em Curitiba. Enviou seus trabalhos mais espontâneos. E ganhou, apesar da crítica não tão favorável, o primeiro prêmio em ambos. Ganhou, também, dois meses de depressão. Por fim, seus quadros, esculturas e instalações, mesmo os que o agradavam, já não significavam nada para ele. Não lhe transmitiam nenhuma sensação, nenhum sentimento, nenhuma mensagem. Até que se sentira bem após realizar cada um daqueles trabalhos. Mas ele não queria fazer terapia ocupacional, queria fazer Arte. Os críticos, quando do anúncio da premiação, afirmaram que ele tinha talento, mas que ainda não possuía uma linguagem própria. “Talvez seja esse o papel da arte, hoje”, pensou. “Mostrar o quanto nossa vida tornou-se vazia, insossa e apenas de cada um de nós próprios.” Então, mesmo sem abandonar o curso de Artes Plásticas na Universidade de Brasília, desistiu da Arte com “A” maiúsculo.
Agora aderira ao sistema. Trabalhava numa agência de publicidade, no Plano Piloto. Estava bem melhor, finalmente ganhava algum dinheiro. Comprou um carro, aprendeu a usar o computador e vários softwares gráficos. Sua vida, porém, continuava vazia, insossa e apenas dele próprio. Pensou em matar-se em nome da Arte – ainda era um artista – mas isto também já haviam feito: Schwarzkogler, um austríaco, em 1969, o fizera propositadamente durante uma performance. Sem contar os inúmeros artistas mortos no embate cotidiano com as circunstâncias. Não havia saída. Nem mesmo num meio recente como o computador.
“O jeito é ir levando”, disse um amigo.
Foi o que fez. Continuou na agência, na faculdade e pintando um quadro ou outro em casa. Apenas para manter a prática. Com o tempo, essa atividade caseira tornou-se uma obsessão. Até que um dia, desmaiou de exaustão sobre uma de suas telas. Sua cara ficou estampada ali.
“Fantástico!”, afirmaram os críticos. “Ele encontrou um estilo próprio. Sente-se sua marca, sua personalidade em cada uma de suas obras. Um gênio!”
Aquilo o aborreceu. Quando caíra sobre a tela, borrara a idéia inicial. Mas vá lá, precisava de dinheiro. Pelo menos poderia largar o emprego.
Assim, aos domingos, derretia-se de tédio na frente da TV. Deitado sobre uma tela lambrecada de tinta.
“Fantástico!”, diziam os críticos. Ele faturava.
Fazia esculturas com argila. Usava-as, quando ainda úmidas, como travesseiro. Sua casa tornara-se um processo de criação artística. Os críticos aplaudiam. O dinheiro e a fama entravam.
Numa segunda-feira cinzenta, o reitor da UnB mandou chamá-lo. Encomendou uma estátua do piloto Ayrton Senna que seria colocada, no campus, entre as estátuas do John Lennon e do Mickey Mouse. O curador do Museu Guggenheim, de Nova York, estaria presente na inauguração.
“Preciso de algumas semanas”, disse.
“Três.”
“Três?!”
“É, três semanas.”
“O.k. Três.”
Ao fim de dezessete dias, ainda não havia começado. Seria sua grande oportunidade. Era preciso cumprir o trato. Precisava levar seu trabalho a sério. E em poucos dias, com certeza, estaria expondo em Nova York. Talvez fosse esse o caminho para a Arte: ser apreciado num museu da Grande Maçã.
Comprou, pois, tintas, resinas, pigmentos vários, arames, solda, ligas de ferro doce, bacias, uma caixa d'água – onde prepararia a resina. Com arame, ferro doce e a solda montou um esqueleto. Só faltava cobrir com resina e depois pintar. Mas não conseguiu. Estava levando o trabalho a sério demais. Isto o travou. Exasperado, despejou os vidros de resina na caixa d'água, cuspiu lá dentro.
“Bela merda!!”, berrou. E saiu batendo a porta.
Quando voltou, às quatro da manhã, estava bêbado. Agora ele ia conseguir. Encheu as bacias com diferentes tintas. Levou o esqueleto de metal até a caixa d'água. Escorregou. Caiu dentro da caixa d'água. Levantou grogue, não entendia o que estava acontecendo. Coberto dos pés à cabeça com resina, tentava sair da caixa. Quando conseguiu, saiu tropeçando e caiu sobre as tintas. Engoliu mais de dois litros de cores variadas. A resina já estava quase seca. Teve tempo apenas de levantar-se e retirar uma bacia de tinta da cabeça. A resina endureceu.
Dois dias depois, foi encontrado assim. Em pé, o braço estendido, com a bacia na mão.
“Genial!”, disseram. “É o Ayrton sem tirar nem pôr.”
“Sem tirar nem pôr o capacete”, acrescentou alguém.
A estátua foi inaugurada com estardalhaço. O reitor estava orgulhoso do seu aluno-artista. Pena o rapaz não estar presente. O reitor discursava quando se ouviu um pum próximo à estátua.
“Você escutou esse barulho?”, perguntou o curador do Guggenheim em inglês.
“Eu não fui!”
“Nem eu”, sussurrou o reitor.
“Hmm... Que cheiro de tinta velha!”
Um mês depois descobriram que aquele outro cheiro ruim – que já não era de tinta – não era caca de pomba. Era da estátua mesmo.
“Que idéia fabulosa!”, disse o curador do Guggenheim pelo telefone. “Uma estátua que morre...”
Foi sepultada, três dias depois, numa sala especial do Guggenheim Museum, em Nova York. Era apreciadíssima pelo público. Só não se entendia por que o genial escultor não fora receber os cem mil dólares que recebera pela obra.