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A Tragicomédia Acadêmica, Matando um Mosquito com um Tiro de Canhão - parte 2

Vocês ainda disseram aos meus pais que eu estava fazendo uma maratona de estudos. Não estavam mentindo... Por fim, saí dali para nunca mais voltar. Planejava, evidentemente, retornar com alguma vingança. Mas o esforço e o tempo que despendi para passar nos exames, sem a sua ajuda, me fizeram desistir de qualquer ato revanchista. De um jeito ou de outro, eu fora domado.

Hoje, creio que o senhor tem razão, professor, alunos são gado e devem viver sob golpes de látego. Quando pensam por si, iludem-se e, se demasiado convencidos do próprio gênio, tendem a transformar-se em loucos, talvez até em assassinos. É melhor não lhes estimular a inteligência, é perigoso. E pensar que um dia acreditei que todos os professores fossem mosquitos transmissores da febre da burrice. Meu Deus, como estava enganado. Somos todos iguais, devemos ter instrução similar e sermos tratados da mesma forma. Não existem gênios, isto é mito. O senhor sempre teve razão quanto a tudo isso. E quando ingressei na universidade, apenas comecei a sentir a verdade das suas palavras. Todos sendo adestrados da mesmíssima forma, ninguém melhor do que ninguém e nenhum sábio à vista. Enfim, quem teria autoridade pra dizer quem é e quem não é superior criativa e intelectualmente? Quando vejo essas escolas pra superdotados, vejo apenas um bando de crianças que serão maquinalmente mais eficientes que outras nos afazeres cotidianos. E claro, devem ser exímias nos jogos conhecidos como "exames vestibulares". Contudo, somos seres humanos e não máquinas. E como seres humanos somos todos iguais.

Quando peguei o livro do Hitler para dar uma lida, pensei que encontraria uma espécie de Bíblia do satanismo. Mas encontrei o livro de um homem que se acreditava genial e que, cercado pelas melhores intenções, entregava-se ao delírio de apontar culpados pela miséria humana de que foi testemunha. Eu também cheguei a acreditar que a culpa da nossa burrice nacional fosse culpa dos péssimos professores que possuímos. Por pouco não urdi planos de exterminar esse enxame de mosquitos portadores da pior das doenças: a ignorância. Eu achava que os piores eram esses amestradores de cursinhos pré-universitários, um bando de parasitas da educação, um sem número de mafiosos, proxenetas que transformavam a educação na sua prostituta e dela sobreviviam. Eu os via – inclusive o senhor – como um grupo de showmen e de palhaços que transformava as aulas em espetáculo e que nos ludibriava, fazendo-nos crer que realmente aprendíamos algo importante. Mas assim como um entretenimento de auditório aponta apenas para si mesmo, também as aulas de cursinho exauriam-se no mesmo instante em que eram proferidas, tendo como significado apenas a si mesmas. Para mim, tendo ou não boas intenções, vocês eram a escória da educação, pois limitavam-se a capitaliza-la e a vendê-la em conserva. De estudantes, pensava eu, passáramos a consumidores de conhecimentos. Como vê, eu era tão ingênuo que ainda acreditava que todos vocês queriam nos ensinar algo e que o faziam de maneira estúpida e canhestra. Só agora vejo o óbvio: vocês nos preparavam para uma simples competição, na qual usaríamos o cérebro de forma mecânica, tal como numa queda de braço. Quem tivesse se dedicado a exercícios de musculação cerebral, em academias como a sua, estaria mais habilitado para a luta. Que os músculos cerebrais posteriormente se transformassem em banhas neurais era outra história. Vocês faziam sua parte, recebiam seu dinheiro, e nós, se cumpríssemos o acordo tácito, recebíamos a nossa: uma vaga na universidade. É apenas por isso que pessoas muito inteligentes mas sem recursos não conseguem uma dessas vagas. Afinal, não têm dinheiro para pagar essas academias e suas apostilas-anabolizantes. Mas e daí? O que eu e você podemos fazer, professor? Nada. Está fora da nossa alçada tal problema. E, aliás, seria até prejudicial para pessoas como você, não é? Imagine, substituir tais exames por outro tipo de seleção! O fim da musculação cerebral seria o fim das academias-cursinhos. Mesmo que mudem para outra coisa – como, por exemplo, um jiu-jítsu mental – que mantenham pelo menos o caráter de força-bruta. E eu sei que vocês têm influência($) para mantê-lo. Deste modo a musculação sempre será uma ajuda.

Sim, professor Boa Morte, como já lhe disse, eu também caí na tentação de apontar culpados. E acabei me revoltando contra aqueles que eram os únicos realmente preocupados com um ensino eficiente e coerente com a nossa época. Não, apesar do que disse acima, não estou sendo irônico. Repito: eu me emendei. Quando, tempos atrás – eu já estava formado – surgiu o boato de que aqueles sete estudantes do Purgatório , encontrados mortos, haviam sido assassinados por não conseguirem uma boa colocação no exame simulado, eu até me indignei. Antes, eu mesmo teria pensado em semelhante absurdo. Afinal, já ocorrera coincidência similar e ninguém conseguiu provar nada. Depois, assim que as investigações se encerraram, disseram que os professores do Purgatório haviam subornado a polícia. Contra-senso total! Pessoas como vocês, dedicadas à causa da nossa juventude, jamais cometeriam tal atrocidade. Todas essas acusações não passavam de veleidades de espíritos fracos. Disseram-me que até mesmo um conhecido escritor dedicaria seu precioso tempo a escrever um libelo contra essa "máfia do ensino particular pasteurizado". Claro que nada disso ocorreu. Que escritor em seu juízo são se prestaria a essa atitude vã? Seria o mesmo que disparar canhões contra mosquitos. Só seres estúpidos acreditariam que o problema da educação – se é que ele realmente existe – encontra-se na postura de pessoas tão íntegras e talentosas, como sei que são os professores do Purgatório . Como se costuma dizer, o buraco é mais em baixo.

Houve uma época em que acreditei que, na minha infância, eu conhecera o paraíso. E que, ao entrar na escola, provei do fruto da árvore do conhecimento, sendo, assim, expulso dali. Parecia-me que eu deveria comer mais e mais de tal árvore e, só então, retornaria ao estado de graça anterior. Sentava-me à frente da turma e tirava notas altas. Nunca estudei muito, mas prestava atenção às bobagens que ouvia, enquanto os demais divertiam-se no "fundão". Pouco antes de entrar na universidade, ocorreu uma inversão, desiludi-me e troquei de lugar com meus colegas do fundão. Mesmo depois de terminado o colégio continuei no fundão da vida e da sociedade. Dali observava todas as asneiras e absurdos, como se assistisse a uma verdadeira comédia. Era engraçado ver como os antigos habitantes do fundão estavam à frente de quase tudo na nossa vida. Mais tarde percebi que estava apenas enlouquecendo e perdendo meu lugar no drama geral. Resolvi aceitar as circunstâncias e descobri que sempre lutara com fantasmas. É por isto que um dia me revoltei contra vocês. Fui fraco desde o início e sempre me deixei enganar pela educação besta que recebia. Depois, quando quis que minha dedicação de anos fosse avaliada para entrar na universidade, quiseram – assim me parecia – que eu tragasse mais um monte de inutilidades para prestar um exame absurdo. Não compreendi, como vocês compreendem, que tudo é apenas um jogo e que não deveria dedicar-me com tanto afinco e seriedade, como fizera na minha inútil vida escolar, a essa nova etapa. Hoje, professor, tudo isto é bastante claro para mim. Perdi meu tempo com besteiras, com protestos inócuos, mas me restabeleci a tempo de voltar aos estudos. Hoje sou o que nasci para ser: um professor de história de uma escola de segundo grau. Espero poder seguir seus passos e tornar-me um bom educador. Sim, agora fui irônico, o que eu pretendo é ser professor de cursinho. Este seria meu paraíso. O senhor não teria um emprego pra me arranjar?

Meus sinceros agradecimentos Adão Mark de Barros P.S. : Espero que os bombons lhe agradem." Ao terminar a leitura da carta, o professor Sebastião Epimeteu da Boa Morte sorriu satisfeito. Então ele havia encaminhado uma alma? Que ótimo. Não deixava de ser um presente de Natal. E, pensando nisto, apanhou a caixa de bombons. Era uma embalagem fina, de metal, com adornos em alto relevo. Parecia importada. Leu na tampa: Pandora's Candies. Ficou surpreso. Era o mesmo nome da sua esposa e do novo colégio que abrira em Brasília. Que doce coincidência! Deviam ser deliciosos. Contudo, isto não era suficiente pra se conseguir um emprego... Quando pouco depois Pan, sua esposa, chegou em casa – fora levar presentes às crianças de um orfanato – descobriu horrorizada o corpo sem vida do marido. Ele parecia ter sido espancado e sofrido torturas sem fim. A perícia policial encontrou um enorme pi (3,14...!!!) metido no seu ânus. Também havia reações químicas espalhadas por toda a casa, reações com nitrilas, haletos de acila, ésteres, aldeídos e cetonas. Havia dados sobre o Grupo dos Sete, o Gatt, o FMI, o NAFTA, o APEC e o MERCOSUL saindo por sua boca, uma cena asquerosa. Matrizes numéricas cortavam sua pele. Inequações logarítmicas vazavam-lhe os olhos. A lei de Ohm-Pouillet e a primeira de Kirchhoff escorria-lhe pelo nariz. Um hospedeiro definitivo da toxoplasmose lambia-lhe o ouvido. Seus membros inferiores haviam sido queimados. Provavelmente pelos cnidoblastos dos celenterados que pululavam sob seu corpo. A um canto, sua esposa chorava sem parar: "Mas eu não o deixei nem por duas horas...", lamentava-se. Na autópsia, encontraram ainda: planárias sob suas unhas, uma infinidade de análises sintáticas e morfológicas dentro do seu intestino grosso, frutos indeiscentes no estômago, poemas parnasianos no pulmão, o evolucionismo darwiniano e a história do colonialismo brasileiro no coração e um desequilíbrio iônico no cérebro. Sua traquéia fora cortada por um plano cartesiano e, depois, entupida por um binômio de Newton. Os médicos legistas jamais haviam visto coisa semelhante.

"Foi um crime hediondo! ", proclamou aos repórteres o delegado responsável pelas investigações. No mesmo dia, Adão Mark de Barros foi preso. Chegaram até ele graças à carta. Confessou ter enviado a caixa de bombons que, segundo ele, continha todas aquelas desgraças mortais. Ria muito e repetia sem parar: "Não disse que o filho da puta ainda ia ver uma coisa! Enganei ele direitinho... Sou um gênio!" Infelizmente, ninguém encontrou – sob a estante da sala do professor Boa Morte – a Esperança De Que O Ensino Neste País Deixe De Ser Mera Instrução Caótica E Se Torne Educação. Ela estava gordona. Devia ter comido vários bombons da caixa de Pandora's Candies , na qual também viera deitada ao fundo. Estava pra morrer de indigestão.

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       Vocês ainda disseram aos meus pais que eu estava fazendo uma maratona de estudos. Não estavam mentindo... Por fim, saí dali para nunca mais voltar. Planejava, evidentemente, retornar com alguma vingança. Mas o esforço e o tempo que despendi para passar nos exames, sem a sua ajuda, me fizeram desistir de qualquer ato revanchista. De um jeito ou de outro, eu fora domado.

       Hoje, creio que o senhor tem razão, professor, alunos são gado e devem viver sob golpes de látego. Quando pensam por si, iludem-se e, se demasiado convencidos do próprio gênio, tendem a transformar-se em loucos, talvez até em assassinos. É melhor não lhes estimular a inteligência, é perigoso. E pensar que um dia acreditei que todos os professores fossem mosquitos transmissores da febre da burrice. Meu Deus, como estava enganado. Somos todos iguais, devemos ter instrução similar e sermos tratados da mesma forma. Não existem gênios, isto é mito. O senhor sempre teve razão quanto a tudo isso. E quando ingressei na universidade, apenas comecei a sentir a verdade das suas palavras. Todos sendo adestrados da mesmíssima forma, ninguém melhor do que ninguém e nenhum sábio à vista. Enfim, quem teria autoridade pra dizer quem é e quem não é superior criativa e intelectualmente? Quando vejo essas escolas pra superdotados, vejo apenas um bando de crianças que serão maquinalmente mais eficientes que outras nos afazeres cotidianos. E claro, devem ser exímias nos jogos conhecidos como "exames vestibulares". Contudo, somos seres humanos e não máquinas. E como seres humanos somos todos iguais.

       Quando peguei o livro do Hitler para dar uma lida, pensei que encontraria uma espécie de Bíblia do satanismo. Mas encontrei o livro de um homem que se acreditava genial e que, cercado pelas melhores intenções, entregava-se ao delírio de apontar culpados pela miséria humana de que foi testemunha. Eu também cheguei a acreditar que a culpa da nossa burrice nacional fosse culpa dos péssimos professores que possuímos. Por pouco não urdi planos de exterminar esse enxame de mosquitos portadores da pior das doenças: a ignorância. Eu achava que os piores eram esses amestradores de cursinhos pré-universitários, um bando de parasitas da educação, um sem número de mafiosos, proxenetas que transformavam a educação na sua prostituta e dela sobreviviam. Eu os via – inclusive o senhor – como um grupo de showmen e de palhaços que transformava as aulas em espetáculo e que nos ludibriava, fazendo-nos crer que realmente aprendíamos algo importante. Mas assim como um entretenimento de auditório aponta apenas para si mesmo, também as aulas de cursinho exauriam-se no mesmo instante em que eram proferidas, tendo como significado apenas a si mesmas. Para mim, tendo ou não boas intenções, vocês eram a escória da educação, pois limitavam-se a capitaliza-la e a vendê-la em conserva. De estudantes, pensava eu, passáramos a consumidores de conhecimentos. Como vê, eu era tão ingênuo que ainda acreditava que todos vocês queriam nos ensinar algo e que o faziam de maneira estúpida e canhestra. Só agora vejo o óbvio: vocês nos preparavam para uma simples competição, na qual usaríamos o cérebro de forma mecânica, tal como numa queda de braço. Quem tivesse se dedicado a exercícios de musculação cerebral, em academias como a sua, estaria mais habilitado para a luta. Que os músculos cerebrais posteriormente se transformassem em banhas neurais era outra história. Vocês faziam sua parte, recebiam seu dinheiro, e nós, se cumpríssemos o acordo tácito, recebíamos a nossa: uma vaga na universidade. É apenas por isso que pessoas muito inteligentes mas sem recursos não conseguem uma dessas vagas. Afinal, não têm dinheiro para pagar essas academias e suas apostilas-anabolizantes. Mas e daí? O que eu e você podemos fazer, professor? Nada. Está fora da nossa alçada tal problema. E, aliás, seria até prejudicial para pessoas como você, não é? Imagine, substituir tais exames por outro tipo de seleção! O fim da musculação cerebral seria o fim das academias-cursinhos. Mesmo que mudem para outra coisa – como, por exemplo, um jiu-jítsu mental – que mantenham pelo menos o caráter de força-bruta. E eu sei que vocês têm influência($) para mantê-lo. Deste modo a musculação sempre será uma ajuda.

       Sim, professor Boa Morte, como já lhe disse, eu também caí na tentação de apontar culpados. E acabei me revoltando contra aqueles que eram os únicos realmente preocupados com um ensino eficiente e coerente com a nossa época. Não, apesar do que disse acima, não estou sendo irônico. Repito: eu me emendei. Quando, tempos atrás – eu já estava formado – surgiu o boato de que aqueles sete estudantes do Purgatório, encontrados mortos, haviam sido assassinados por não conseguirem uma boa colocação no exame simulado, eu até me indignei. Antes, eu mesmo teria pensado em semelhante absurdo. Afinal, já ocorrera coincidência similar e ninguém conseguiu provar nada. Depois, assim que as investigações se encerraram, disseram que os professores do Purgatório haviam subornado a polícia. Contra-senso total! Pessoas como vocês, dedicadas à causa da nossa juventude, jamais cometeriam tal atrocidade. Todas essas acusações não passavam de veleidades de espíritos fracos. Disseram-me que até mesmo um conhecido escritor dedicaria seu precioso tempo a escrever um libelo contra essa "máfia do ensino particular pasteurizado". Claro que nada disso ocorreu. Que escritor em seu juízo são se prestaria a essa atitude vã? Seria o mesmo que disparar canhões contra mosquitos. Só seres estúpidos acreditariam que o problema da educação – se é que ele realmente existe – encontra-se na postura de pessoas tão íntegras e talentosas, como sei que são os professores do Purgatório. Como se costuma dizer, o buraco é mais em baixo.

       Houve uma época em que acreditei que, na minha infância, eu conhecera o paraíso. E que, ao entrar na escola, provei do fruto da árvore do conhecimento, sendo, assim, expulso dali. Parecia-me que eu deveria comer mais e mais de tal árvore e, só então, retornaria ao estado de graça anterior. Sentava-me à frente da turma e tirava notas altas. Nunca estudei muito, mas prestava atenção às bobagens que ouvia, enquanto os demais divertiam-se no "fundão". Pouco antes de entrar na universidade, ocorreu uma inversão, desiludi-me e troquei de lugar com meus colegas do fundão. Mesmo depois de terminado o colégio continuei no fundão da vida e da sociedade. Dali observava todas as asneiras e absurdos, como se assistisse a uma verdadeira comédia. Era engraçado ver como os antigos habitantes do fundão estavam à frente de quase tudo na nossa vida. Mais tarde percebi que estava apenas enlouquecendo e perdendo meu lugar no drama geral. Resolvi aceitar as circunstâncias e descobri que sempre lutara com fantasmas. É por isto que um dia me revoltei contra vocês. Fui fraco desde o início e sempre me deixei enganar pela educação besta que recebia. Depois, quando quis que minha dedicação de anos fosse avaliada para entrar na universidade, quiseram – assim me parecia – que eu tragasse mais um monte de inutilidades para prestar um exame absurdo. Não compreendi, como vocês compreendem, que tudo é apenas um jogo e que não deveria dedicar-me com tanto afinco e seriedade, como fizera na minha inútil vida escolar, a essa nova etapa. Hoje, professor, tudo isto é bastante claro para mim. Perdi meu tempo com besteiras, com protestos inócuos, mas me restabeleci a tempo de voltar aos estudos. Hoje sou o que nasci para ser: um professor de história de uma escola de segundo grau. Espero poder seguir seus passos e tornar-me um bom educador. Sim, agora fui irônico, o que eu pretendo é ser professor de cursinho. Este seria meu paraíso. O senhor não teria um emprego pra me arranjar?

Meus sinceros agradecimentos

Adão Mark de Barros

 

       P.S.: Espero que os bombons lhe agradem."

 

       Ao terminar a leitura da carta, o professor Sebastião Epimeteu da Boa Morte sorriu satisfeito. Então ele havia encaminhado uma alma? Que ótimo. Não deixava de ser um presente de Natal. E, pensando nisto, apanhou a caixa de bombons. Era uma embalagem fina, de metal, com adornos em alto relevo. Parecia importada. Leu na tampa: Pandora's Candies. Ficou surpreso. Era o mesmo nome da sua esposa e do novo colégio que abrira em Brasília. Que doce coincidência! Deviam ser deliciosos. Contudo, isto não era suficiente pra se conseguir um emprego...

       Quando pouco depois Pan, sua esposa, chegou em casa – fora levar presentes às crianças de um orfanato – descobriu horrorizada o corpo sem vida do marido. Ele parecia ter sido espancado e sofrido torturas sem fim. A perícia policial encontrou um enorme pi (3,14...!!!) metido no seu ânus. Também havia reações químicas espalhadas por toda a casa, reações com nitrilas, haletos de acila, ésteres, aldeídos e cetonas. Havia dados sobre o Grupo dos Sete, o Gatt, o FMI, o NAFTA, o APEC e o MERCOSUL saindo por sua boca, uma cena asquerosa. Matrizes numéricas cortavam sua pele. Inequações logarítmicas vazavam-lhe os olhos. A lei de Ohm-Pouillet e a primeira de Kirchhoff escorria-lhe pelo nariz. Um hospedeiro definitivo da toxoplasmose lambia-lhe o ouvido. Seus membros inferiores haviam sido queimados. Provavelmente pelos cnidoblastos dos celenterados que pululavam sob seu corpo. A um canto, sua esposa chorava sem parar:

       "Mas eu não o deixei nem por duas horas...", lamentava-se.

       Na autópsia, encontraram ainda: planárias sob suas unhas, uma infinidade de análises sintáticas e morfológicas dentro do seu intestino grosso, frutos indeiscentes no estômago, poemas parnasianos no pulmão, o evolucionismo darwiniano e a história do colonialismo brasileiro no coração e um desequilíbrio iônico no cérebro. Sua traquéia fora cortada por um plano cartesiano e, depois, entupida por um binômio de Newton. Os médicos legistas jamais haviam visto coisa semelhante.

       "Foi um crime hediondo!", proclamou aos repórteres o delegado responsável pelas investigações.

       No mesmo dia, Adão Mark de Barros foi preso. Chegaram até ele graças à carta. Confessou ter enviado a caixa de bombons que, segundo ele, continha todas aquelas desgraças mortais. Ria muito e repetia sem parar:

       "Não disse que o filho da puta ainda ia ver uma coisa! Enganei ele direitinho... Sou um gênio!"

       Infelizmente, ninguém encontrou – sob a estante da sala do professor Boa Morte – a Esperança De Que O Ensino Neste País Deixe De Ser Mera Instrução Caótica E Se Torne Educação. Ela estava gordona. Devia ter comido vários bombons da caixa de Pandora's Candies, na qual também viera deitada ao fundo. Estava pra morrer de indigestão.