A idealização do amor é quase irresistível. De repente vem aquela sensação de se sentir completo, de que a felicidade realmente chegou e que agora teremos alguém com quem dividir todos os segredos. A busca desse sentimento de completude é tão grande, que muitas vezes ultrapassa o racional. O amor demais compromete a individualidade das pessoas, exigindo entrega total e sem reservas. A psicóloga e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jane Felipe, aponta que as mulheres acabam por fazer concessões em nome desse amor sem limites. Um exemplo disso é não exigir o uso do preservativo nas relações sexuais.
"Por amor eu me entrego, eu confio plenamente, cegamente, e um dos efeitos desastrosos dessa idealização do amor romântico, por exemplo, são os altos índices de contaminação pelo HIV de mulheres. Então eu diria que as mulheres têm uma educação muito mais romantizada, muito mais idealizada do que os homens". Jane Felipe destaca que, em nome dessa entrega, homens e mulheres se sentem no direito de vasculhar bolsas e carteiras, controlar os passos do parceiro e exigir a companhia do outro todo o tempo. Tudo isso para garantir que o amor ficará ali para sempre. Ela explica que, se para as mulheres o perigo mais freqüente é a perda da identidade, entre os homens se observa uma imensa dificuldade de aceitar a frustração. E se os meninos não são educados para aceitar a contrariedade de uma decepção amorosa, o resultado pode ser ações violentas. Jane Felipe coloca o assassinato da garota Elóa como um exemplo, em que o namorado da adolescente não aceitou o fim do namoro, invadiu sua casa e acabou por matá-la.
"Isso resulta ou pode resultar em uma possível violência, na medida em que os meninos desde sempre são educados a terem uma baixíssima tolerância à frustração. Então quando eles crescem e se deparam com um não amoroso, então a pessoa não quer mais ficar com eles, eles se sentem enfurecidos e no direito, porque vêem a mulher como propriedade, se sentem no direito de matar, de invadir a casa, de espancar, etc". Para Jane Felipe, situações como essa só podem ser evitadas com uma educação sentimental, com o debate na escola e nas famílias. Nesse sentido, ela acha importante que desde cedo as crianças entendam que é possível ter uma vida interessante independentemente da parceria, aprendendo que as relações se transformam e não duram para sempre. Mas para discutir isso com os filhos, os pais devem rever suas posturas. Se o casal não se relaciona com carinho e respeito, o resultado esperado é que os filhos repitam padrões negativos em suas relações futuras.
Ainda que homens e mulheres busquem o amor, elas ainda são educadas para darem mais importância ao relacionamento. A psicóloga Jane Felipe aponta que grande parte das mulheres só se sente valorizada quando é escolhida por um homem. Foi dessa forma que a empresária Ana se sentiu durante muito tempo. Criada em uma família onde o pai bebia e a mãe era muito submissa, ela se acostumou a dar tudo de si nas relações, a não estabelecer limites para conseguir se sentir amada. Um dia, ela foi a uma reunião do grupo MADA, Mulheres que Amam Demais Anônimas, e percebeu que a necessidade de afeto também pode ser um vício.
"E desde a primeira vez quando eu cheguei ao grupo, desde a primeira reunião que eu assisti, que eu ouvi os depoimentos, eu percebi que o meu problema interno era meu, com a minha infância, com a minha criação, e que não era uma coisa relacionada com um homem específico. Aí eu fui ver que eu era uma co-dependente sentimentalmente. Eu sou bem sucedida financeiramente, mas emocionalmente eu precisava de um homem ao meu lado, senão eu não estaria completa". É difícil pensar no grupo de mulheres que amam sem o preconceito, sem o rótulo de que são mulheres desequilibradas falando de suas decepções. Mas a reunião surpreende pela diversidade de histórias, pela profundidade dos depoimentos. E são relatos comuns, daqueles que ao menos uma vez na vida já se ouviu de uma amiga próxima. São mulheres jovens e maduras, de profissões variadas, algumas delas muito bonitas. É o caso de Julia, de 25 anos. Loira, bem vestida, traços delicados. Quem olha, acharia impossível que ela tivesse problemas afetivos. Mas ela conta que procurou o grupo MADA há três anos, quando estava em meio a uma relação com um dependente de cocaína.
"Porque eu queria tomar conta, eu queria ser mulher, amante, mãe, irmã, eu queria ser tudo, e isso esgota, entende? E fui percebendo que isso não era sadio. E aí que eu comecei a querer. Qual é o meu problema? Eu sempre me fazia muito essa pergunta, qual é o meu problema?
Julia conta que vem de uma família ajustada, o casamento de seus pais é harmonioso. Ou seja, a dependência afetiva não necessariamente está relacionada com um lar conflituoso. Ela fala que seu padrão é se envolver totalmente com a vida e com os problemas do outro, mas analisa que quem age dessa forma não faz isso por amor, mas sim para se tornar necessária e controlar o parceiro.
"Porque um padrão da co-dependência é o controle. E se você ser boazinha, quer ser perfeitinha demais, é porque você quer controlar aquela pessoa. E hoje, não vou dizer que me curei disso 100%, mas eu me cobro, fico me vigiando para não querer mais me envolver na vida de ninguém, cada um tem a vida que quer, se a pessoa optou por um estilo de vida, o problema é dele. E outra coisa, quando eu me deparo com certos relacionamentos em que o homem que tem um comportamento que não é saudável, isso não me atrai mais". O grupo Mulheres que Amam Demais funciona nos mesmos moldes do AA, os Alcoólicos Anônimos. Nas reuniões, ninguém dá conselhos ou pretende resolver os conflitos alheios. São apenas leituras que falam dos 12 passos para superar a dependência afetiva, além dos depoimentos. Os nomes das mulheres aparecem na reportagem foram trocados, para manter o anonimato que caracteriza o grupo. Mais informações podem ser encontrados na página do grupo na internet, que é www.grupomada.com.br.
De Brasília, Daniele Lessa